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O CABRA QUE VARREU A LUA

  • Foto do escritor: Renan Novais
    Renan Novais
  • 20 de jun.
  • 10 min de leitura

por Renan Novais



Esse texto curto é uma passagem,  para todos aqueles que estão passando. 


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Um espaço cênico é montado no meio da praça, passagem, avenida, lugar aberto e de todos. Cinco atores entram no espaço vindo de diferentes direções, cada um deles canta uma música. Eles se reconhecem, se reencontram, cumprimentam os passantes e o público, a música e seus sorrisos nunca são interrompidos enquanto preparam os cenários. 


I

Venham ver!


Eu cheguei hoje,

Eu cheguei ontem, e anteontem.

Eu desembarco aqui amanhã, cedo, cedo!

Eu vim, voltei, e agora eu vim de novo.

Como assim, eu vim de quê?

De esperança!


Eles apontam para todas as direções. 


Migrante!

Venha ver uma experimental,

mas respeitosa cena teatral,

que fala de amor e despedida,

de distância e acima de tudo da vida!


Migrante! 

Feita pra você que assim como eu,

acordou sem o sol no céu, sozinho, 

tomou um café e saiu pro destino, 

e parou aqui por engano. 


Migrante! 

Feita pra você que sabe a dor da saudade,

que ama quem deixou lá no chão distante,

e que tem esperança na volta, 

por que acredita que tudo vai dar certo.


Migrante! 

Pra você que tá passando e tá com pressa, 

que tá pensando no amanhã antes do hoje,

que guardou o almoço pra comer a janta, 

esse espetáculo é feito pra você!


Migrante!

Feito pra você que não tá entendendo nada, 

que parou porque viu gente reunida e resolveu ficar.

Isso é pra gente conversar!

Esse teatro é pra você!


O Cabra chega a São Paulo.


II

De lá mesmo.


O Cabra parece estar perdido. Todos os atores portam malas, roupas coloridas, itens regionais pendurados no figurino.


ATORES Quem é essa gente que não é igual árvore, que morre no lugar que nasceu?

Que tem essa ânsia profunda de juntar as coisas e sair caminhando no mundo.

Que gente é essa que não tem terra sua, nem chão seu.

E que dentro do corpo, igual semente, traz a ideia que floresceu.

Que gente é essa que deixa quem ama numa estrada sem rumo pra ir atrás de um sonho que é quase absurdo, e que traz na mala vento e esperança, além de outra calça e uma camisa.

E que chega aqui repartido, pois do coração só trouxe o que foi permitido. 

Ele veio de Minas, ou foi do Espírito Santo?

Que nada, veio além do Mato Grosso, perto da divisa.

De perto que não foi, tem na língua palavra que não é daqui.

Veio de longe, andou a pé, pegou carona, andou mais um pouco, se perdeu e agora se achou. Veio de lá, mas chegou aonde?

Ô Cabra, veio de onde, moço?


CABRA Eu saí e lá de…


CORO Ai, não disse?

CORO Te falei!

CORO Tu tem cara mesmo!

CORO Já comeu?

CORO Tá com fome?


CABRA Eu vim de…


ATORES E ele andou, andou, andou, andou, andou, andou, andou… Ai, chegou aqui!


Eu vim do norte, lá do sul, lá do nordeste; 

Do sudeste, centro oeste; 

- Pra vocês: cabra da peste; 



Andei por toda essa tal de zona leste; 

E sem ter pra onde ir; 

- Sai aqui na estação Bresser; 


Na cidade grande ele chegou; 

Logo, logo se assustou; 

Prédio, carreta e metrô; 

- Eu venho lá do interiô!


CABRA Mas venho como quem procura

outra terra pra plantá, uma enxada pra batê, 

um trabai pra meiorá, uma chance pra vivê. 


III

E agora, moço?


CABRA Eu tava vindo pra procurar trabalho. Moço, eu andei por todo lado, pra cá, pra lá, pra acolá, e por ali também, bem debaixo do viaduto. Aí finalmente alguém falou que eu podia vim aqui e eu vim. Mas no caminho me perdi, e perdi do bolso os papéis, e aqui precisa de papel pra tudo, pra trocar, pra morar, pra comer, pra arrumar um trabalho. E pra provar que eu sou eu mesmo!


Durante essa fala ele é furtado em uma aglomeração.

 

Quem é ele? 

De onde veio? 

O que ele faz aqui? 


Quem é ele? 

Está perdido 

E pra onde vai partir?


Quem é ele? 

Diz que é terra 

Mas não tem raiz aqui; 


Quem é ele? 

Está rondando 

Procurando onde cair. 


Quem é ele?

Vem de longe, 

e veio parar aqui!


CABRA E na hora de voltar, não me deixaram!


GUARDA Ô meu amigo!

Aqui tu num vai passá não,

se passa um, passa um milhão!

E aí, eu fico como? 

Esse chão aqui é pago!

E eu sou pago pelo dono.

Pra cuidar… Pra vigiar… Pra ver…

Aqui tu não vai passá, nem vai pulá!


CABRA Você é trabalhador, assim como eu sou trabalhador, por que é que um não pode ajudar o outro? 


GUARDA Ô Cabra!

Ainda tô lhe tratando com carinho, 

mas arreda o pé, e vai se embora, 

Que esse é o fim do seu caminho.


CABRA Eu como vim preparado,

artista nato! Me pus a cantar. 


O Cabra pega um pandeiro na mala e começa a cantar uma música enquanto pede moedas. Um outro guarda aparece. 


GUARDA II E pra essa baderna aqui, você tem autorização? 


CABRA Não! 


GUARDA II E sai cantando assim, no ouvido dos outros? 


CABRA E é proibido?


GUARDA II Se num tem liberação, eu posso até te levar preso! 

E passarinho na gaiola, vai deixando de cantar. 


CABRA Mas preciso de dinheiro pra poder me alimentar!


GUARDA II Então vai ordenhá sua vaca, que aqui não tem mamadeira.

Todo mundo aqui trabalha, e não fica de brincadeira. 


IV

Planta sem raiz no pé, voa.


O Cabra estende um pedaço de papelão na calçada e deita nele. Um funcionário aparece e começa a espirrar jatos de água com um borrifador. O Cabra acorda.


CABRA Para de me molhar! Que eu não sou planta que vai nascer.


FUNCIONÁRIO Mas é lixo que eu vou limpar e tá no chão que eu vou varrer. 

A cidade precisa ser limpa, foi o prefeito que mandou fazê!


CABRA Eu sou terra!

Mas molhado não viro lama, ninguém chora em terra que a lágrima já nasce seca. De onde eu venho, o barro é duro, e chupa e some com a água toda. Asfalto não morre de sede! 


FUNCIONÁRIO E planta sem raiz no pé, voa! Se o senhor não se secar, vai é sim, ficar encharcado. Ô cidadão, eu tô fazendo o meu trabalho. É o que garante o pão na boca do meu filho. O senhor não tem em casa outra boca pra por pão? 


CABRA Não! Nem na minha o pão é mastigado. Nem casa pra morar, nem miolo pra morder. Desempregado, eu só tenho engolido vento, e molhado e sujo desse jeito, quem é que confia me dar um emprego?


FUNCIONÁRIO Cabra, se eu te der uma vassoura, você varre esse chão? 

Mas tem que trabalhar direito, senão arruma com o patrão!


CABRA E eu varri o chão, o pó, as pedras, a ferrugem, e até as almas que tavam aqui. E quanto mais eu varria, mais o patrão queria que eu varresse. E eu varri o chão, o pó, as pedras, a ferrugem, as almas, e até o fim dessa rua, que ele disse que fazia parte da empresa. 

E foi numa dessas varridas, numa dessas passadas da vassoura, num carro passando, num trem que passava, num passo que eu dei, que ela passou por aqui.


Uma moça passa apressada e se esbarra com o Cabra. A cena fica em câmera lenta, os dois mantêm um longo olhar.


CABRA Tava toda apressada, mas parou pra trocar um olhar comigo, foi nesse momento que eu amoleci as estribeiras, se eu soubesse falar bonito, moça, eu juro que eu podia te explicar as estrelas. 


Os outros atores cantam uma música brega romântica.


CABRA Mas esse olhar, foi só uma olhadinha mesmo, 

que logo ela lembrou que tava com pressa, e saiu correndo, 

apressada, esbarrando, sem olhar pra trás, nessa selva de pedra.


V

A lua é logo ali.


A moça some na multidão, o Cabra olha para a vassoura na sua mão e tem um momento de sonho, dança com a vassoura, rodopia pela rua. Está apaixonado. O Patrão aparece. 


PATRÃO Ô sujeitinho!

Tu tá sendo pago pra varrer o caminho.

Não pra ficar paquerando brotinho.

Nem conta tu tá dando de varrer um pedacinho. 

Tu não é dançarino, nem artista. É peão. 

Não tem destaque, nem aplauso, o coro só constroi multidão.

Com uma mão tu varre a rua e com a outra faz o quê? 

Vou lhe dar outra vassoura, pra com as duas tu varrer!


Varre o chão, varre a passagem, 

varre até o amanhecer.

Varre a rua e a calçada,

ranca os mato, vamo vê! 


Varre tudo! Varre logo! 

Não tem tempo pra perder! 

Quem passar nesse pedaço,

vai ver brilho, pode crer!


Varre o bafo da cachaça,

varre a borda dessa praça, 

varre toda essa fumaça, 

varre logo! Não faz graça!


Varre o final dessa rua, 

varre até a mulher nua, 

E se lhe sobrar um tempo,

passa a vassoura na lua! 


PATRÃO Passa a vassoura na lua, Cabra!


CABRA Longe desse jeito, doutô?


PATRÃO Longe é só o que eu não vejo.

A lua é logo ali!


CABRA E eu varri. Se tá limpa desse jeito, foi por que eu dei um trato. E eu varri, varri, varri e varri ainda mais. Até que cansei. Eu sou necessitado, mas não sou escravo! Dá licença, seu patrão, isso aqui é exploração!


PATRÃO Ô sujeitinho mal criado, 

começou andar em comício, acha que ficou estudado.

Se tu não trabalha, tem quem quer trabalhar, 

igual a você eu tenho um monte, que faz essa roda girar. 


VI

O que você diria?


O Patrão e os outros atores tiram a roupa de funcionário do Cabra. 


CABRA De novo desempregado,

lembrei de todos que eu tinha deixado,

e de tudo que larguei pra vir pra cá.

O peito amassou, e eu segurei pra não desabar.

Não vi mais aquela menina, 

e ficar sozinho só aumentava a saudade,

e mais solitário é o domingo, 

pra quem não tem nem amizade.


Todos os atores começam escrever uma carta. 


ATORES Se você pudesse dizer uma palavra pra quem tá longe, o que você diria?


Uma grande carta é composta com palavras ditas pelo público.  Os atores vão até a atriz que agora faz a mãe e sussurram nos seus ouvidos o que estão dizendo seus muitos filhos. A mãe sorri.


MAINHA Um dia ele chegou e disse: 

“Vou pra São Paulo, Mainha”.

Eu me calei, no fundo a mãe sabe das coisas,

via ele andando nos canto, desolado, perdido, com olhar pro horizonte.

Esse menino tá insatisfeito com esse monte de nada que tinha conhecido.

Olhei bem pra ele, pra ver se era isso mesmo, mas continuei calada. 

Sabia que essa vontade ia levar os pés dele pela estrada,

e não era minha vontade, nem meu medo que ia impedir nada.

Em casa, debaixo dos olhos, a gente cuida, a gente cria e trata. 

Aqui tem pouco, mas o amor é muito, e terra longe, gente estranha, destrata.


O Cabra improvisa uma carta com todas as coisas ditas pelo público. 


CABRA Agora eu to dormindo num albergue que tem aqui no fim dessa rua, quando escrevo pra casa eu minto, falo pra mainha que tá tudo bem, que tenho emprego e um cantinho pra encostar,

e que conheci uma menina do trabalho, 

e uma hora apareço pra visitar. 


MAINHA Coração de mãe sabe das coisas. 

Às vezes mandava lembrança, foto, terço, santo, ou alguma coisa pra pendurar. 

E segurar essas coisas na mão, era como segurar na mão dele, mas saudade da gente só some quando quem faz ela aparece.

Eu olhava pro caminho que ele foi, e cansava a vista, e fiz isso por anos e anos, esperando ele voltar.


VII

Somos todos do mesmo chão.


CABRA A cidade é grande, mas ninguém conversa não, 

só te ajudam se você der algo em troca, essa é a condição,

Tem quem corre porque tá com pressa, ou porque não acordou,

Mas é lei do relógio desse tempo de que todo mundo se atrasou.

Então um pula por cima do outro, grita, faz birra, empurra, até se estapear, 

nesse jogo eles competem com raiva e só um pode ganhar. 

Enquanto isso, meu amigo, minha amiga, a gente vai levando, vai vivendo,

pois o mesmo trem que leva, vai trazendo. 

É dezembro. De novo.

E a gente planeja, promete, faz pedido pra santo,

Essa vida tem que melhorar, a gente pede tanto.

Eu? Ah, eu vim de longe, moça. Fiz casa onde não era casa.

Eu? Sim! Eu trabalho aqui. 


O Cabra agora é um vendedor ambulante. Todos os atores esticam panos no chão, espalham diversas coisas, como fones, talheres, bugigangas. 


Eu vendo fone, 

vendo doce, vendo bala, 

passageira aqui não paga, 

mas também não vai levar. 


Tenho chiclete, 

chocolate e prestígio. 

Até o final do solstício, 

tô vendendo, vem comprar. 


Eu vendo sim, vem cá comprar. 

Ou compra um, ou compra dois 

Pra me ajudar.  (2X)


É promoção, tá mais 

barato que o do lado,

paga dois e leva quatro, 

e até um brinde eu posso dar.


Seu passageiro, vem o rapa 

eu vou ligeiro, 

ele toma meu dinheiro, 

diz que aqui não vou ficar. 


Mas sou teimoso, 

eu preciso do trabalho 

vendo até um agasalho, 

pra na chuva tu andar.


Eu vendo sim, 

vem cá comprar. 

Ou compra um, ou compra dois,

pra me ajudar. (2X)


CORO OLHA O RAPAAAA!!!


Todos simulam fugir em câmera lenta, nesse momento reaparece a moça. O Cabra fica paralizado. 


CABRA Enquanto todo mundo corria, eu fiquei ali, paradinho olhando pra ela.

O nosso olhar agora durou um ano, séculos, milênios. 

Parecia que agente já se conhecia e há muito tempo não se via,  e eu queria correr, abraçar, falar qualquer coisa que fosse bonita, mas quando a gente se apaixona, vira estátua, sei lá. 

Aqui, agora, eu viveria de amor.

É uma fome que a gente só mate se comer…


CORO Ô Cabra!!!


CABRA Eita que aqui na rua a censura é livre!

Mas eu tava comendo esperança, futuro e felicidade.


CORO Ah, sim. Aí, pode. Desse jeito com poesia, pode!


CABRA Por um tempo a gente ficou assim, 

Eu vendia tudo do mundo e ela varria a estação.

E a gente se olhava, batia um papo, contava as novidades.

Às vezes tomava um cafezinho ali no bar, e de vez em quando saia pra dançar.

E assim, a vida a gente vai levando. 


Forma-se uma pequena festa, com música e dança. No fim da festa eles limpam as sujeiras deixadas 


CABRA E assim, a vida a gente vai levando. Um dia depois do outro, depois um outro e mais um. E quando perguntam de onde eu sou, ah, você sabe! Daqui, de lá, às vezes de longe. Mas daqui, do chão que eu piso e divido com vocês. 

ATORES Eu sou de lugar nenhum, somos de lugar nenhum. E por sermos todos de lugar nenhum, somos todos desse mesmo lugar.


Eles cantam. Não há blecaute. Tudo continua quando ele vier amanhã.


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