A Paixão de Cristo: tradição e formação no maior evento teatral caieirense
- Beatriz Nauali

- 10 de jun.
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Atualizado: 10 de jun.
No último 18 de abril de 2025, sexta-feira santa, foi celebrada a céu aberto a 28ª edição da encenação da Paixão de Cristo no município de Caieiras – região metropolitana da cidade de São Paulo –, atuada por alunos do curso livre de teatro do Centro Cultural Isaura Neves e realizada pela Secretaria de Cultura e Turismo do município. O espetáculo que moveu centenas de espectadores, mesmo num feriado frio e chuvoso, é um dos eventos teatrais da região metropolitana à oeste da Capital que mais mobilizam público e movimentam verba em estrutura e prestação de serviços, ficando atrás apenas da famosa encenação regional de Santana de Parnaíba.
“Há 28 anos, a cidade de Caieiras se transforma em um grande palco de fé, emoção e tradição com a encenação da Paixão de Cristo. Este espetáculo, que já faz parte do calendário cultural e religioso da região, atrai centenas de espectadores todos os anos e emociona fiéis e apreciadores da arte teatral.” (Divulgação do evento em página do Facebook)
Nos chama atenção, de imediato, o fato de um evento teatral deste porte permanecer com atividades contínuas por mais de 25 anos, fora da capital, e com tamanha recepção, devendo-se certamente ao rito e à tradição milenar que evoca a partir da religião mais praticada ao redor do mundo, o cristianismo. Curiosamente a realização do espetáculo, ano após ano, constroi uma tradição local inscrita sobre a própria tradição cristã. Desta forma, não é de se surpreender que pela adesão e legitimação dos espectadores – provavelmente cristãos devotos que vêm reafirmados seus valores e moral –, a encenação permaneça em sua longevidade diferente da maior parte das produções teatrais independentes.
Apesar de um espetáculo de grande porte, a peça não figura no circuito profissional por ter um elenco composto pelos alunos das turmas do curso livre de teatro, que atuam de forma voluntária sem qualquer tipo de remuneração, alguns recém iniciados e outros presenças antigas que já participam da encenação há anos, desde quando a materialização da peça ficava a cargo da Companhia Arcanjos do Teatro, dirigida pela figura emblemática no cenário cultural caieirense, Antônio Sérgio de Camargo, ex-diretor e professor do curso livre de teatro. Sérgio foi responsável pela introdução de inúmeros alunos nas práticas teatrais – eu que vos falo, inclusa –, e muitos ainda o descrevem com carinho ao relatar sua trajetória na direção não apenas da Paixão de Cristo como também das peças que compunham as mais de 15 edições da Mostra de Teatro “Gerson Luiz Candido de Oliveira” que junto à Paixão representavam os eventos teatrais mais aguardados do calendário cultural da cidade. Sérgio foi ainda homenageado este ano, como presença simbólica do 1º Festival de Teatro de Caieiras, o FESTECA, que reuniu inúmeros coletivos da cidade e da região.
Atualmente a Paixão de Cristo é dirigida pelo jovem João Orta, como muitos do elenco, ex-componente da Cia. Arcanjos. João assumira a assinatura artística do espetáculo nos últimos anos, porém muitas de suas escolhas refletem ainda o modelo de representação da peça utilizado nos mais de 20 anos anteriores, muito provavelmente pelo que já comentamos sobre a manutenção das tradições.
Pelo fato da peça ser realizada a céu aberto – exceto as realizadas no período da pandemia –, no Estádio Municipal Carlos Ferracini, cuja distância palco-plateia torna impraticável a voz não-microfonada, a direção adota um modo de atuação que tem por uma das bases a gravação prévia das vozes dos atores num estúdio, e durante a apresentação os atuantes dublam suas próprias vozes. A despeito das palavras não serem ditas ao vivo, não se deve enganar, no entanto, aqueles que acreditam que isso torna o trabalho dos atores mais fácil, pelo contrário, há por sua vez uma exigência de ordem técnica que os colocam presentificados e atentos ao tempo dos técnicos de som, que precisam também estar todos afinados. A amplitude da área cênica e a distância espacial dos espectadores exige ainda que os atores realizem um trabalho corporal de gestos grandes, quase numa esteira dos modos trágicos gregos, que também aparecem na formação do coro, a multidão que representa o povo na história.
No que tange ainda a escolhas tradicionais, o espetáculo flerta com o formato dramático aristotélico – não sem os estranhamentos causados por fatores como os citados acima, como as formas corporais e a presença do coro –, quando representa passagens da história de Cristo de forma literal, aspirando o realismo da ação: o julgamento, o chicoteamento no palácio de Heródes, a via sacra onde o Jesus/o ator carrega a cruz, e sobretudo o auge dramático, o calvário onde ocorre sua crucificação, que por meio da narrativa dramática, aliada muitas vezes à músicas cristãs do imaginário popular, concebe a empatia que emociona o público. Algumas das edições trazem ainda figuras alegóricas como parte da criação mitológica cristã, os anjos e demônios, que ao seu modo influenciam as ações humanas que desencadeiam a morte de Cristo para purgação do pecado presente na humanidade; tais figuras, desempenham papel crucial no teor dramático-moralizante da dramaturgia.
Há que se falar, no escopo da discussão sobre tradições que não se oxigenam beirando o conservadorismo, que um dos elementos fundamentais – se não o mais fundamental –, da dramaturgia e consequentemente da encenação necessita revisões: o Cristo Redentor branco. Pela razoabilidade, é preciso que se reconheça que ao longo das inúmeras edições da Paixão, houveram Cristos negros, interpretados por atores da cidade, tais como Renan Novais e Marco Silvestre – o derradeiro em pelo menos três edições –, fator que pode refletir sim algumas tentativas da direção em instituir novas discussões que perpassam pela imagem idealizada do redentor cristão, apesar disso, o discurso racial ou a pesquisa histórica não se aprofundam, talvez pelo medo da recepção negativa ou por enfrentamentos e falta de adesão dentro da própria produção do espetáculo. Afinal romper significativamente uma tradição com mais de 25 anos não viria ou virá sem embates tanto na ordem institucional quanto na relação do público com a obra.
Mesmo diante das contradições que envolvem a repetição de padrões sociais há tanto tempo consolidados, a encenação da Paixão de Cristo em Caieiras conquista um feito louvável ao chegar à sua 28ª edição, com um grande grupo em cena e com um público fiel. Mais do que um espetáculo religioso ou um momento de celebração comunitária, essa iniciativa representa uma potente experiência pedagógica para os participantes, especialmente para os jovens e adultos que, muitas vezes pela primeira vez, têm contato direto com o fazer teatral. Ao se envolverem com a montagem – seja na atuação, nos bastidores ou na preparação coletiva – esses alunos vivenciam o teatro não apenas como arte, mas como espaço de troca e aprendizagem viva. Na prática do palco, o teatro se torna uma escola de impacto pedagógico profundo: estimula o desenvolvimento da expressão corporal e vocal, amplia a escuta e o olhar sensível para o outro, o comprometimento com um processo coletivo e o respeito à diversidade de pensamentos e experiências. É por meio dessa imersão que muitos descobrem além do prazer de criar qual é o seu lugar no mundo, descobrem-se a si mesmos de forma crítica e confiante. Mais do que formar artistas, a experiência forma sujeitos que se reconhecem como parte ativa de uma comunidade e que aprendem, por meio da arte, novas maneiras de significar suas histórias e seus vínculos sociais.








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