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Aprender a ser crítica pra vingar

  • Foto do escritor: Beatriz Nauali
    Beatriz Nauali
  • 10 de jun.
  • 5 min de leitura

Como dramaturga – e até mesmo em meu processo de amadurecimento como atriz – gosto de compreender e propor a obra, o fruto da labuta, como um motor de pensamento, como o coração que pulsa o sangue e mantém o fluxo dentro de nós, que mantém o movimento. Creio que a crítica deveria seguir na mesma esteira.

A verdade é que a crítica vem caindo em desuso. Em palavra e função. Sensacionalismo? É pra ser desesperador mesmo. Alguns artigos recentes sobre o assunto vêm abordando a queda na presença de críticos especializados não apenas em teatro, mas em arte no geral, nos veículos nacionais de imprensa. Na contramão, no entanto, presenciamos a profusão de canais de crítica independentes aliados às ferramentas da internet e suas redes sociais, compartilhando pensamentos e provocações sobre as práticas cênicas contemporâneas, mantendo a roda girando.

Entre fruição, registro e análise da cena contemporânea, tais agentes, numa ocupação muitas vezes voluntária e sem remuneração vêm repensando o exercício do registro crítico como uma ação mais responsável e criativa, para além do sentido de labor, interessada na transformação social.

Vejo que muitas vezes os "parâmetros de avaliação" tornam a crítica clássica bastante distanciada, quase como se o sujeito fosse uma barreira fria e inanimada e a obra não o fosse capaz de atravessar, assumindo a postura arrogante do “surpreenda-me”, ou ainda no “nada é capaz de me surpreender”. Critérios muitas vezes puramente técnicos – parte da devoção ao repertório europeu-norte-americano –, maniqueístas, desinteressados da relação do sujeito espectador com a obra que está sendo fruída, são aplicados à obras, territórios e corpos distintos do idealizado, desconsiderando todo um contexto essencial para absorção da obra em sua completude.

A nova crítica tem buscado priorizar uma leitura crítico-poética, provocadora, questionadora e construtora dentro de uma relação consciente do sentido de comunidade: somos todos do mesmo setor, todos artistas, portanto é de se esperar que seria do interesse de todos que houvesse um cenário de produção artística propositora de debates e de escuta coletiva. Não é o que acontece. A proposição de uma comunicação sincera, sensível e construtora esbarra no legado narcísico e asqueroso da crítica arcaica consumista – “tal peça é genial”, “tal peça é horrível”, “tal peça é panfletária”; “tal peça é ingênua”, “fulano de tal e grande elenco” –, que além de irresponsável com a diversidade e oxigenação dos modos de pensamento e processos de criação, criou panelinhas – hoje se diz networking –, e uma pletora de artistas mimados “aclamados pela crítica”. Ora, eu te pergunto, quem são esses “aclamados pela crítica”?

Falo de uma crítica irresponsável, pois muitos dos críticos da velha guarda parecem propositalmente esquecer que o teatro como muitas outras linguagens esteve muitas vezes à serviço de ideologias, fazendo da crítica enviesada instrumento de perpetuação de um padrão exploratório – a catequização, o adestramento, a aculturação e colonização.

Não digo nada novo, isso é o que tem sido pisado e repisado por artistas de corpos e práticas dissidentes do padrão estabelecido pelo modelo de reprodução do pensamento hegemônico sob o qual a crítica clássica está inscrita; a regra é clara, a visão de mundo branca, cisgênera, capitalista-elitista, não legitimará jamais a produção artística-intelectual não branca, com diversidade de gênero, popular, em suma, inclusiva e acessível. Daí a necessidade de novos corpos críticos.

Como mulher negra e periférica, tenho pensado e buscado compreender a crítica atravessada pelo viés racial e de classe, como ela se daria. Antes de mim vieram outros com a mesma inquietude, alguns deles contribuíram direta e indiretamente para a proposição dessa Desforra Crítica, mas cada vez mais sinto premente não só a discussão de um crítica racializada, como a discussão de um problema anterior que se afigura mais profundo: a crítica como reguladora de uma ética do fazer artístico e como um ethos da classe.

Muito se fala do teatro que cultiva o diálogo e a escuta, mas pouco se praticam as teorias quando falamos da crítica, que inserida constantemente num cenário de amizades e inimizades, coloca em xeque toda idealização de trabalho coletivo. Quando não é diplomática e elogiosa para manter as relações de troca – manutenindo as panelinhas, pisando em ovos, medindo palavras, criando novos tabus –, a crítica baseada no modelo clássico, é desrespeitosa ou no mínimo ignorante, limitada e irresponsável que exclui em número, grau, gênero e raça, um sem fim de expressividades cênicas não originadas ou derivadas da tradição eurocidental.

Não se trata da disputa de uma verdade absoluta, não se trata de competir para ver quem está mais certo ou entendeu melhor, mas sim da proposição de um debate fervoroso e aprofundado sobre a obra - que leva tempo, suor, esforço, labuta, pesquisa - e suas propostas de discussão. Não é apenas o ato de dar opinião, ou meramente atribuir um juízo de valor, e gostar ou desgostar, mas mergulhar nos porquês e desconfiar de si mesmo e de suas maiores crenças em favor da construção coletiva – são os porquês da crítica: por que eu penso do jeito que eu penso? Por que a gente pensa do jeito que a gente pensa?

Não se trata de uma utopia em que todos os artistas sejam amigos – isso não acontecerá –, mas do reconhecimento de si enquanto parte de um coletivo legítimo, com direitos e deveres dentro de um contexto social e humano.

Penso que a crítica estimula, mais do que o “avanço”, a “evolução” – no sentido neoliberal da coisa –, à continuidade dos trabalhos, induzindo à prática, ao ensaio, à pesquisa, à investigação, mantendo os agentes devidamente apropriados, inspirados e conscientes de seu ofício.

Trata-se de uma ruptura violenta esta proposta da nova crítica, pois mexe com um modo de percepção do mundo que está incutido em todos nós, desde o nascimento. Pertence à compreensão e prática de uma abolição da suposta universalidade e onisciência da branquitude. É exercer a liberdade de pensamento e compartilhamento de inquietações para a uma autonomia de si e, por consequência, do coletivo. Tentar compreender os caminhos tomados pelo outro e as escolhas que foram feitas em suas encruzas. É construir argumentos, articular e materializar o pensamento, mostrar os critérios, ser transparente com o seu caminho de construção do discurso. É às vezes dizer que não sabe, e não saber, e incomodar-se com o não conhecer tudo. Nem tudo a gente sabe, mas é capaz de aprender. É valorizar a memória contra o epistemicídio, e registrar não só na palavra escrita como no imaginário coletivo as obras e trajetórias daqueles de quem a hegemonia não fala. É cobrar aqueles que insistem em permanecer nos ideais coloniais e se sentem no direito de continuar reproduzindo uma cultura dita superior em detrimento da sobrevivência não somente artística mas humana dos corpos dissidentes. A crítica para a construção de novas relações, sensíveis, responsáveis, criativas, abertas e estáveis, para o bem comum. Para articulação do coletivo. Para vingar como artista.


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