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Construindo identidades do território - RAFAEL RODRIGUES

  • Foto do escritor: Renan Novais
    Renan Novais
  • 20 de jun.
  • 11 min de leitura

Essa primeira série de entrevistas da DESFORRA CRÍTICA!, foram feitas com artistas que são de uma imensa preciosidade, não só por serem criadores dos quais acompanhamos e admiramos o trabalho, ou porque já, em outras ocasiões, empreendemos parcerias nas realizações de projetos, mas acima de tudo, por serem artesãos da cultura que resistem bravamente em um cenário muitas vezes não tão favorável. Esses artistas continuam ano após ano, frente à todas adversidades, desenvolvendo trabalhos na região, trazendo, seja pelo teatro, pelo cinema, pela poesia, pelos trabalhos sócio-culturais, debates, reflexões, aprendizados e trocas. Criando não só um movimento cultural potente na região, mas um movimento que fortalece os vínculos sociais, os grupos, os encontros, e, possivelmente a mais poderosa delas, as nossas identidades.


Acervo pessoal do artista
Acervo pessoal do artista


RAFAEL RODRIGUES, nasceu em Franco da rocha - SP em 1990, é Professor de história e geografia da rede pública do estado de São Paulo há mais de 10 anos, atualmente vice-diretor, arte educador, Poeta, Slammaster do Slam no Caixote, a palavra é o sopro da ancestralidade, é membro fundador do coletivo artístico literário Encontrão Poético.







Rafa, me fala um pouco sobre você:


Eu sou pai, preto, poeta e professor. Sou professor há quinze anos na rede estadual de São Paulo, sou professor de história e geografia, já fui coordenador, e agora sou vice-diretor. 


O que você faz enquanto artista?


Eu faço uns quadros, já fiz alguns graffiti, estêncil. Também mexo com mídias digitais, com as coisas do Encontrão, as fotos, postagens e tudo mais. Eu vivo a dualidade do ser artístico e do ser trabalho, eu vivo nessa divisão, das minhas obrigações da escola, educação e tudo mais, e a arte, as produções escritas e as coisas da internet, eu sou aquele artista moderno, que quer fazer de tudo. 


Qual é sua trajetória artística?


Minha trajetória artística, eu gosto de dizer que ela foi um respiro da minha profissão, por que como professor a gente trabalha com a  palavra, porém, é uma forma de trabalhar com a palavra que tem que ser muito direcionada, muito refletida, a gente traz um trabalho com a  palavra ferramenta, que não é a palavra com sentimento, é a palavra informação, isso me trazia muita angustia, apesar de ser professor, sou um cara que não fala muito, sou muito observador, também está relacionado a criação, por ser um homem negro, e era o comportamento que meu pai tinha, de mandar ficar quieto, não fazer bagunça. Apesar de falar o que era necessário em sala de aula, trocar ideias com os alunos, mas aquilo me trazia muita angústia, e foi através da escrita que eu fui entendendo esse processo, me libertando de alguma sentimentos, algumas outras paradas.

Meu viés artístico vem nesse preceito mesmo, pra mim é uma outra forma de trabalhar com a palavra, da palavra “engessada” da academia para a palavra poética, mais sentimental, mais aberta, mais livre. 

Nós fundamos o Coletivo Encontrão Poético nesse sentido, de ser um espaço para as pessoas se encontrarem enquanto artistas, seja na poesia, na dança, nas artes plásticas, produções de quadros, esculturas…Eu sempre gostei de desenhar, de escrever, essa veia artística pra mim vem mais nesses espaço de protesto, de falas que eu não conseguia ter na profissão e no dia a dia, por observar muito, sempre tive muitas coisas pra falar, mas nessa sociedade as pessoas não querem falar coisas profundas, querem falar coisas superficiais e tudo mais.

Através da poesia eu consigo falar desse monte de coisas que eu queria falar, de forma poética, metafórica, e reflexiva, com dois ou três versos que falo de um sentimento que pesa mil quilos. 

Você se lembra de algum momento em que a arte te surpreendeu? Ou aquele momento que você pensou: “Nossa, quero ser artista!”


Vou falar de mim e do Encontrão pois está muito relacionado. No Encontrão nós temos a atividade na praça, e para além disso temos o Encontrão Nas Escolas, que é o espaço que a gente visita as escolas, para falar de poesia, de slam, e nós fazemos um slam com os alunos. O que mais me surpreende na arte de escrever, são as possibilidades de tratar feridas, de curar sentimentos, de fazer esses sentimento se tornarem palpáveis para outras pessoas, e me surpreende quando as pessoas dizem que entenderam o verso e que esse verso tem haver com eles, e o que me faz ficar feliz, é quando eu tô na escola, e vem os alunos dizer que gostaram das poesias, que vão escrever a partir do que conversamos com eles.  E também nesses anos que realizamos o Encontrão, da quantidade de coletivos que têm surgido a partir das nossas atividades, é saber que se um dia a gente parar, tem mais coletivos para dar continuidade. Tem muita coisa que faz a gente feliz no processo artístico. Na escola eu tenho alguns alunos que fazem slam na escola, que escrevem e me procuram pra mostrar a poesia deles, e isso é muito bacana, ser para eles essa referência. 


Me conta um pouco sobre o Encontrão Poético: 


Ali em 2016, 2017 aconteceu o sarau da Conpoema, e em Franco da Rocha, acontecia o Sarau do Coletivo Sete na Linha, nós, antes de criar o Encontrão íamos nesses rolês, mas nós queríamos fazer um outro tipo de encontro, queríamos fazer do nosso jeito, o nosso sarau, na época a Praça do Coreto, em Francisco Morato, era abandonada, não tinha nada lá, e pensamos em ocupar, com a nossa poesia, com as nossas ideias. Chegamos lá com nosso megafone, ocupamos o espaço e encontramos um caixote de feira, e o caixote de feira se tornou nosso símbolo. O símbolo do Encontrão é um caixote de feira com o coreto em cima. A nossa ideia era se desvincular de toda parafernalha, nos ocuparmos lá com nossos corpos, nossas palavras e nossa alma, nós adotamos o caixote pra ser nosso palco. Inclusive uma das nossas primeiras frases é: “Aqui não é palco, é caixote, não espere que ele ou ela te note, faça-se notar”. A pessoas sobem no caixote e citam suas poesias. Nosso sarau é em roda, no centro da praça, não precisa inscrição, você sente no seu coração, vai pro meio da roda e cita seu poema. E a gente não usa amplificação, porque na nossa sociedade a gente precisa praticar a escuta, e dentro da roda de sarau, a gente quer que todo mundo pare pra ouvir a pessoa. Temos mais de cem edições do sarau, e nossa proposta era não só fazer o sarau, mas criar um espaço de articulação de ideias, de reflexão, um espaço formativo, então fazemos uma roda de conversa, convidamos um artista local para expor alguma obra, alguma escultura, falar sobre isso, temos o sarau e por fim o Encontro Poético. Sempre nesse preceito de ser um espaço formativo, debatendo inúmeros assuntos pautados na periferia e na pessoa preta na sociedade. A ideia era fazer um ponto de cultura, com poucos recursos, com a vontade de ocupar e estar ali, e com o tempo as pessoas foram ocupando a praça nessa ideia de se encontrar mesmo.


Rafael, por que aqui não é palco, é caixote?


A ideia do palco ser um caixote, é de quebrar essa visão eurocêntrica da ideia do palco, de uma plateia e um apresentador. É uma provocação no sentido de que não é um palco, é só um caixote, é só você subir ali, vem aqui e faça-se notar. Todo mundo aqui pode ser o artista, e todos podem te ouvir e te ver melhor. 


O que é o Slan?


O slan é uma onomatopeia, que significa impacto, barulho, uma grande explosão. Gosto muito de falar que na prática, principalmente quando vou nas escolas, que existe a diferença do poema para a poesia, o poema é a poesia escrita, ele não reflete a poesia se você não tiver sensibilidade para entender o que está escrito ali, é só palavra, e no slan, diferente do sarau, as pessoas tem contato com o poema através da poesia, no slan você começa entender poema e poesia através da oratória, você faz o caminho inverso. Na escola quando você aprende sobre poema e poesia a gente começa lendo, e não ouvindo alguém ler ou lendo em voz alta. Para nós a oralidade é muito mais válida do que a escrita, a escrita é uma coisa grega, e a oralidade é uma coisa mais ancestral, dos nossos povos. E tem uma coisa de separação também, de quem tem a escrita é mais qualificado, mais inteligente e tals. O slan pega a gente nesse sentido, de ter o contato com a poesia primeiro, pelo sentimento, pela oralidade, e depois você vai pra escrita, para leitura. O slan é espaço de fala, de poética, de desabafo, de rimas e tudo mais, e não deixa de introduzir também ao campo literário, eles começam a ler para aprender mais, primeiro pela oralidade, depois para a leitura e escrita.

Para entender a poesia é preciso ter uma prática de leitura muito profunda. 

O que é que o jovem preto, pobre e periférico quer expressar?


No Encontrão, esse espaço constroi a possibilidade de identificação, de intensidade, de personalidade, e eles falam muito sobre as mazelas da sociedade e das pessoas pretas mesmo, de preconceito, de criminalização. A gente tem muitos relatos das meninas sobre abusos, sobre as vivências delas. Agora eles falam muito de amor, de coisas do cotidiano, e eu sempre pergunto pra eles, poesia de slan, é poesia ou é desabafo? Como é que eles estão construindo as poesias deles, porque às vezes é um espaço de terapia mesmo, um espaço de cura. Tem coisas que as meninas passam no trem, e deixa ela muito mal, ela faz um poema e grita pra todo mundo. É um espaço para se representar, se identificar, ser eles mesmos, e, principalmente, se fortalecer em grupo. 


A poesia Slan, tem um caráter mais competitivo, performativo e político, que através das palavras, evoca manifestações e sentimentos, para além disso, dentro da comunidade, qual a importância dessa arte? Quais os efeitos sociais do Slan?


Eu vejo que muitos dos meninos que participam do coletivo, acabam indo pra faculdade, seja na arte, na área da educação. A nossa influência é sempre falar que eles precisam estudar, que não podemos manter da forma como as coisas estão, e eu acho que esse princípio de entendimento político, de sair da bolha social, se observar como indivíduo e ser político, tem essa ganho social de empoderamento, de coletivo, de personalidade. Muitos deles entraram pro ramo da literatura também, de querer escrever livros. Eu chamo de “literaLUTA marginal” que é a literaLUTA de todos os dias, a literatura para a luta. 


Também no ano passado o Encontrão foi às escolas. Como foi essa experiência e como é a recepção dos alunos a esse contato com a poesia Slan?


Como eu sou professor, eu já tinha uma proposta de “saraula”, que é uma aula sarau, a gente fazia uma oficina de poesia em um dia, discutia o que é poesia, alguns poetas, eu recitava para eles, e eles iam pra casa com a missão de construir um poema pra que a gente pudesse recitar na aula. E desde essa ideia eu comecei a  ver as possibilidades de levar o encontrão para as escolas, levar uma proposta para as turmas, e de falar de sentimentos mesmo, de entendimentos de si próprio, começamos ir em escolas propondo nossas palestras, nossas conversas. Já visitamos mais de quatorze escolas, vamos lá trocamos ideias, falamos de sociedade, preconceito, história do Brasil, e introduzimos os poemas com eles.

Nós sempre tivemos essa característica de não ser só um rolê, mas também ser um espaço de formação. 

A ideia é a militância por esse viés cultural, de formar, construir, instruir, para depois brigar. 


A Cidade, ou melhor a Secretaria de Cultura tem alguma ação para a continuidade das ações do Encontrão, ou do Slan do Caixote?


Na verdade não. A gente começou o Encontrão com três grandes sonhos, que eram: Se a gente parar, alguém continuar nosso trampo, e esse a gente já conseguiu, o segundo era que não íamos precisar ir atrás da prefeitura, eles que iam vir atras da gente, por que a primeira vez que a gente precisou, eles não ajudaram. Nós começamos cobrar editais da prefeitura, mas foi na pandemia que ficamos sabendo da lei Aldir Blanc, nós criamos um grupo e chamamos todos os artistas para cobrarmos a prefeitura, e na época eles não tinham habilidade de produzir um edital, e éramos o setor de trabalho que mais era afetado,  que viviam de contato com o público, e junto com o Conpoema, que são incríveis, nós auxiliamos a prefeitura a construir o edital da Aldir Blanc. Eles, a prefeitura, achavam que não haviam artistas na cidade, então fomos na base, criamos um formulário, criamos projetos, discutimos, e na minha perspectiva, eles aprenderam ali a fazer os editais, antes o dinheiro voltava pro estado porque eles não sabiam como escoar, muitas vezes contratavam grupos que nem eram da cidade pra fazer eventos. Eles também nos ouviram, porque viram que nós sabíamos o que estávamos fazendo, conversamos sobre como poderia ser feito, como podemos alcançar as coisas, e hoje em dia conseguimos alcançar os editais.

A proximidade com a secretaria se deu dentro da insistência. 

Hoje a gente sobrevive de editais, compramos equipamentos, e a maioria dos investimentos que a gente recebe, se converte em premiações, em estímulos para os artistas mesmo, nosso objetivo é pegar essa verba e pulverizar ela, a gente reverte em fomento para quem participa dos eventos. A gente produz coisas também, camisetas, ecobags, no fim do ano vamos lançar um livro de poesias. 


Você acha que a manifestação do Slan, de poesia na praça, sofre preconceito? Por que?


Hoje em dia nem tanto. Hoje as escolas convidam a gente, e faz parte do currículo do Estado de São Paulo, aparece em diversas propostas de aulas, de geografia, história, em língua portuguesa nem se fala, sempre aparece. Estão entendendo o espaço do slan, por conta disso os poetas estão estruturando suas poesias de uma forma mais acessível aos alunos, que seja uma linguagem que atenda a molecada, que eles curtam, e eles mesmos começaram a se organizar e ir nas escolas, fazer palestras sobre slan, se organizando com os espaços. 


Produzindo arte na região, o que é ou quais são suas maiores dificuldades, ou do coletivo?


A primeira vez que a gente entrou em contato com o poder público da cidade, eles cortaram a nossa luz, e a gente tinha ido falar com eles, para poder utilizar o espaço, os banheiros, nós fizemos um ofício e quando chegamos lá, tudo apagado. Fomos ao mercado, compramos um monte de velas e fizemos um círculo com velas na praça, uma vela no caixote e fizemos o encontre a “luz de vários”. Fizemos esse primeiro na resistência, na revolta mesmo. Com o tempo, já são oito anos fazendo o Encontrão, a prefeitura começou a olhar com outros olhos, ainda mais por ser um centro histórico da cidade, o único lugar de lazer da região central, e que esteve abandonado em algumas gestões, hoje reformaram o espaço, arrumaram os banheiros, mas tivemos que começar no grito mesmo, com quatro caras. E quando a gente começou a utilizar o espaço da Praça do Coreto ninguém usava, hoje muita gente usa, todo terceiro sábado do mês a gente tá lá.

Hoje, às vezes quando tem evento da prefeitura, eles não cedem o espaço pra gente, meio que pra não competir, a gente manda o ofício, e em cima da hora eles avisam que já tinham solicitado antes. Hoje a nossa dificuldade é mais essa relação com o espaço.

Tem alguém na cidade ou na região que produz arte e que você acha incrível?


Minha inspiração está muito próxima, tem muita coisa com meu irmão gêmeo, a gente discute muito, conversa muito, e tá muito relacionado a isso. E o que me inspira muito é a própria cidade, eu sou um poeta visual, o que eu vejo eu escrevo, sentir a diversidade dos cheiros, ouvir uma família rindo ou as crianças correndo na rua, o sol no fundo do morro.

O que me inspira é a cidade mesmo.  

O que o Rafa ainda gostaria de produzir na cidade? Aquele sonho que vem na sua cabeça às vezes:


Ultimamente eu quero muito construir o slan interescolar da região. O Encontrão nas escolas tem um pouco esse princípio, a gente vai lá, depois eles fazem uma competição e sai um campeão da escola. E depois competir com outras escolas. 


Rafa, a arte é importante pra nós, por que?


A arte é esse respiro da vida, nessa sociedade monocromática, que nos impõe rotinas que matam nossa criatividade, e nós somos criativos por natureza, então a arte abre esse espaço para essa expressão natural da humanidade. Na arte que a gente se encontra, cria identidade, seja ela como for, é ali que a gente se encontra. 


Você pode nos deixar uma recomendação? Uma música, um poema, um vídeo ou recomendar um livro? 


Cara, tem um poeta que me inspira muito, é o Miró da Muribeca - um poeta visceral, ele escreve e interpreta. Um poeta completo. 


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