Construindo identidades do território - LUCIENE PEREIRA
- Mobatará Firma Cultural

- 10 de jun.
- 11 min de leitura
Atualizado: 20 de jun.
Essa primeira série de entrevistas da DESFORRA CRÍTICA!, foram feitas com artistas que são de uma imensa preciosidade, não só por serem criadores dos quais acompanhamos e admiramos o trabalho, ou porque já, em outras ocasiões, empreendemos parcerias nas realizações de projetos, mas acima de tudo, por serem artesãos da cultura que resistem bravamente em um cenário muitas vezes não tão favorável. Esses artistas continuam ano após ano, frente à todas adversidades, desenvolvendo trabalhos na região, trazendo, seja pelo teatro, pelo cinema, pela poesia, pelos trabalhos sócio-culturais, debates, reflexões, aprendizados e trocas. Criando não só um movimento cultural potente na região, mas um movimento que fortalece os vínculos sociais, os grupos, os encontros, e, possivelmente a mais poderosa delas, as nossas identidades.

A primeira entrevistada foi LUCIENE PEREIRA de 35 anos, psicóloga, afro cozinheira, PLP Juquery e produtora cultural em Franco da Rocha desde 2012. Co-fundadora do coletivo Baciada das Mulheres do Juquery, idealizadora e produtora da Mostra de Cinema da Mulher desde a sua primeira edição em 2016 e sócia-fundadora da CONPOEMA participando de diversos projetos de coletivos da região.
Luciene, me fala um pouco sobre você, e o que você faz e qual sua trajetória enquanto artista?
Sou preta, sou mulher, sou franco rochense, feminista, pansexual, não monogamica, produtora cultural e psicóloga. Eu me apaixonei pela cultura muito por influência dos coletivos, os teatros, saraus, sou co-fundadora da Conpoema, eu me aproximei do Teatro Girandolá e comecei a atuar junto com o pessoal, fazia produção, contra-regragem de alguns espetáculo, começamos produzir o Sarau Conpoema, e na Baciada a gente começou fazendo roda de conversa em alguns espaços, ações de lambe-lambe, e fui tentando acrescentar isso a uma outra arte que faz parte da minha trajetória e soma no que eu faço hoje enquanto artista, que é ser Afro Cozinheira, eu adoro cozinhar e cozinhar é uma arte, a gente troca afeto, a gente constroi relação através dos alimentos, sou formada em técnica em nutrição, entre todas as coisas que eu faço, eu tento somar nutrição, psicologia e o contato com a arte e cultura, entendendo esse território. E no coletivo eu fui descobrindo esses diversos afazeres dentro da arte e da produção cultural.
Paralelo ao trabalho cultural eu já trabalhei por quase oito anos como técnica em nutrição em instituições hospitalares com refeições coletivas, em instituições prisionais eu também já estive com essa profissão, e agora eu começo uma clínica com atendimento psicoterapêutico, também pensando nesse cuidado, no bem estar da população negra e periférica,
meu trabalho tem esse viés, é quem eu sou, eu preciso estar perto dos meus, eu atuo dessa forma.
O que é ser afro cozinheira?
Eu costumo dizer que eu sou afro cozinheira porque muito do que eu aprendi e o que eu sei cozinhar hoje, eu aprendi com a minha vó, então vem nesse sentido de ancestralidade, de aprender com as mais velhas, de carregar os ensinamento que minha avó aprendeu com a mãe dela, com as mais velhas, quando eu trago esse símbolo, vem disso, de ter orgulho em carregar essa ancestralidade. Por diversas vezes eu vi minha vó cozinhar, e com ela surgiu esse desejo, de cozinhar, de ver as pessoas comendo felizes. Recentemente eu fiz duas oficinas de comida afro-brasileira, uma com as crianças da CONPOEMA, trabalhando com a história e com a comida, e de como isso está relacionado e o quanto nossa comida é carregada de história, de afeto, a gente aprende observando, ouvindo, compartilhando.
Você se lembra de algum momento em que a arte te surpreendeu? Ou aquele momento que você pensou: “Nossa, quero ser artista!”
Uma das coisas mais marcantes para mim foi a primeira vez que eu peguei num microfone em um sarau, eu tremia muito, as pessoas me olhando e eu pensando que não ia conseguir ler uma poesia, e pra mim foi muito importante, pois se a gente pensar na nossa estrutura de sermos pessoas pretas, do lugar que a gente vem, esses acessos, esses lugares de fala nos são negados, e isso me marcou muito, a importância de estar ali com um microfone e as pessoas me ouvindo. E cada sarau que tinha eu me desafiava a ir lá e ler a poesia, de acessar mais esse lugar de fala, até o dia que eu tive coragem de ler a minha poesia, que eram sobre a minha trajetória, minha personalidade, eu escrevo muito sobre quem eu sou, o que eu gosto de fazer, falo sobre minha transição capilar, sobre me reconhecer como mulher negra, e isso é muito importante para mim, pois a questão da transição e da minha identidade passou a ser validada na minha maioridade, antes disso eu não me reconhecia enquanto mulher preta, eu alisava o cabelo, achava que os espaço que me eram negados nunca poderiam ser acessados por mim, que as coisas na televisão estavam muito distantes, as referências só melhoraram conforme foi passando o tempo, com mulheres pretas nos comerciais, produtos para mulheres pretas.
A arte possibilitou isso para mim, de me ver, me enxergar enquanto mulher preta, de me aceitar e mostrar pro mundo que eu sou essa pessoa.
Mulher preta sim, mulher LGBT sim, mulher não monogâmica, uma mulher casada com outra mulher há muitos anos. E se eu pensar nessa estrutura de onde eu vim, de família, quanta coisa eu consegui acessar que minha mãe não conseguiu e minha vó muito menos.
Me fala um pouco sobre a Baciada das Mulheres do Juquery
Eu conhecia as meninas pelo Girandolá, pela CONPOEMA, estivemos juntas nessa construção, e iamos para eventos em São Paulo e pensavamos que não tinhamos isso aqui, na nossa cidade, um coletivo feminista pra pensar a arte no território. Nos reunimos com outras amigas e fomos conversando sobre os nossos desejos, sobre o que queríamos fazer, e a princípio falávamos sobre o feminismo, os movimentos, e começamos a fazer rodas de conversas no centro de Franco, nas praças, pensando em como ocupar esses espaços, esses territórios, e sempre pensando em como podíamos atingir as mulheres, despertar o interesse em outras mulheres para participar dessas rodas, quais eventos podíamos fazer, então começamos com rodas de conversa, com ações de lambe-lambe com frases feministas, coisas que achamos importantes para nossa militância, e a Mostra de Cinema veio de uma ideia de um dia que nos reunimos em casa com um projetor emprestado, escolhemos um filme e debatemos sobre o filme, e foi muito produtivo, depois disso uma de nós começou a estudar cinema e pensamos: “Vamos fazer uma mostra de cinema?”. A primeira mostra veio em 2016, fomos até a Secretaria de Cultura, explicamos o projeto, e eles conseguiram os equipamentos e o espaço, e a nossa primeira mostra aconteceu no calçadão em frente a Casa de Cultura, com um longa metragem e dois curtas, convidamos outras amigas da militância para compor a roda de conversa, tivemos uma abertura, um show, convidamos mulheres para equipe técnica, nós temos mulheres técnicas de projeção, técnicas de som, todas mulheres, um evento de mulheres para mulheres, com espaço de fala para mulheres, o homens estariam só para ouvintes, numa ideia de fortalecer mulheres mesmo. Tivemos bastante público, bastante pessoas interagindo. Nas edições seguintes começamos a escrever projetos, pensando em captar recursos para poder realizar o evento e poder pagar pelo nosso trabalho de idealização e de produção do projeto. Nas edições seguintes fizemos um edital de chamamento, com filmes de até 20 minutos dirigido por mulheres, e nós nos surpreendemos, recebemos filmes de diversos estados do país, do exterior, e foi uma alegria ver a potência de ter mulheres dirigindo em outros territórios, de trabalhos incríveis, produções com poucos recursos, mas importantes e com seu valor. E a partir das atividades artísticas e do cinema, a gente pensou em trazer formação em cinema, e nossa primeira oficina dentro da Mostra, foi a Oficina de Cinema de Guerrilha, fizemos uma atividade prática, fomos gravar na rua, vieram mulheres de Jundiaí, e o movimento só foi se fortalecendo. Em 2020 conseguimos nosso primeiro ProAc, e antes disso tínhamos apoio da secretaria para espaço, alimentação e equipamentos, mas não tínhamos salário, era na raça, na resistência. Com os editais pudemos remunerar quem produz, temos essa preocupação de remunerar bem essas mulheres, entendendo o espaço, o trabalho, pensando nas contrapartidas, no que mais a gente pode fazer, fomos desenvolvendo coisas, e a Mostra foi se transformando no que é hoje.
Hoje essa equipe é composta por quantas mulheres? Todas da região? Qual a formação dessas mulheres?
Atualmente no coletivo nós somos quatro, dividimos as principais funções entre a gente, de assessoria de imprensa, produção executiva, produção e design. Todas somos da região de Franco.
Quantas dessas mulheres se consideram pretas? O grupo tem essa preocupação de dar protagonismo a mulheres pretas, periféricas, pobres, tanto nas fichas técnicas, quanto nos conteúdos dos projetos?
Atualmente no coletivo, falamos que temos a cota, 50% mulheres pretas, e 50% mulheres brancas, e temos mulheres lgbt no coletivo, somos três. Temos essa preocupação e essa importância de ter dentro da equipe mulheres LBT’s, mulheres pretas, temos também a questão da acessibilidade nos eventos, e antes dos editais proporem os serviços de acessibilidade já tínhamos um olhar importante para isso, pensando em como poderíamos fazer para a Mostra ser mais acessível, então nas mostras temos intérprete de libras em todas as exibições, priorizamos filmes com legendas, com audiodescrição. Estamos tentando acessar esse público, assim como a gente pensa em descentralizar e acessar mulheres de bairros mais distantes, territórios mais distantes, pensar nessas pessoas com deficiência, pois elas também estão produzindo, estão fazendo.
Me conta sobre a Mostra de Cinema da Mulher
A gente começou a produzir a Mostra de Cinema da Mulher em 2016, é uma mostra produzida por mulheres, toda nossa equipe é formada por mulheres, os filmes que trazemos são filmes dirigidos por mulheres, trazem narrativas de mulheres, mulheres lgbt’s, mulheres trans, mulheres pretas, mulheres de mais idade, mulheres em situações encarceramentos, parteiras, benzedeiras. Já trabalhamos com várias temáticas dentro da nossa mostra de cinema, nós começamos muito despretensiosamente, não tínhamos cinema em Franco da Rocha na época, a gente viu que o cinema é uma ferramenta muito potente, ainda uma ferramenta muito elitizada, não tão acessada pelas pessoas da periferia, hoje a gente até tem o cinema daqui, mas com produções comerciais, o que a gente produz não é exibido aqui. Dentro da Baciada a gente trouxe formação para as mulheres aqui na região, a Mostra não só exibe filmes, também propomos rodas de conversa sobre os temas que esses filmes abordam, convidamos outras mulheres para compor nossos debates, pra gente aprender e poder trocar. Também produzimos alguns filmes dentro do coletivo, temos dois documentários, um vídeo performer, somos praticamente uma rede, com o pessoal do Teatro Girandolá, as meninas da contação de histórias, dos outros coletivos da região. Recentemente fizemos uma direção coletiva do nosso último filme, é um documentário sobre as mulheres do Assentamento Dom Tomás Balduíno, aqui de Franco da Rocha, fizemos a primeira exibição lá, inclusive. A ideia não é só trazer o cinema, mas descentralizar para que outras mulheres acessem essa ferramenta.
Esse é um dos pilares da Baciada: o fortalecimento das mulheres.
Para chegar aqui, estamos indo para a décima mostra, a gente trabalhou muito na militância, sem reconhecimento, sem patrocínio, fazendo o que agente acredita, o que a gente gosta, e é claro que a gente quer fazer o que a gente acredita e gosta e ser valorizada por isso.
Eu vi que vocês levam a Mostra de Cinema da Mulher para várias regiões da Bacia, dentre elas, bairros, escolas e até o CDP Feminino. Me conta como é a recepção das propostas artísticas nesses espaços
Essa coisa do descentralizar vem um pouco da pandemia, nós produzimos uma mostra da pandemia, e não podíamos aglomerar, não podíamos estar no mesmo espaço, pensamos no online, mas nem todo mundo acessava, então fizemos uma mostra em formato híbrido, com exibições online, debates online, e também fomos aos bairros, e foi muito interessante, exibimos nas paredes, reunimos os moradores locais, e as pessoas foram, assistiram e houveram retornos muito interessantes, o público pede pra gente voltar, eles sentem falta desses movimentos.
Vocês acreditam que os espectadores dessas regiões, principalmente as mulheres, ao verem um projeto de mulheres, totalmente conduzido por mulheres, onde mulheres abrem esse espaço de discussão, isso gera um local mais confortável onde elas possam falar, expor suas questões?
Sim, em todos esses espaços tivemos trocas muito importantes, sempre com muita potência, pegamos o cinema que é uma ferramenta muito elitizada, que é outro espaço, e são trabalhos que não estão nos streamings, são produções independentes que vem num contexto de história, de território e o quanto a gente fortalece isso. Nós sempre pensamos no que mais a gente pode fazer para continuar fortalecendo isso. E há dez anos atrás quando começamos com a Mostra, não haviam muito coletivos produzindo, nem teatro, música, slan, sarau, literatura, e hoje nós temos muita coisa acontecendo, e como podemos fortalecer os eventos dos outros e trazer as pessoas para o nosso evento, entendendo como potencializar essas trocas e se fortalecer dentro dos eventos. A Mostra foi tomando um espaço, foi crescendo tanto, que hoje a gente tem a noção de que é muita coisa para quatro pessoas pensarem, realizar, decidir, porque dentro da mostra mesmo, na nona Mostra, por exemplo, são três eventos em um, tem a pré mostra, as formações e oficinas que acontecem em outros espaços e depois as exibições da Mostra, e ainda tem 10 dias de exibição online.
Como a cidade, mais especificamente a secretaria da cultura, ajuda na manutenção da Baciada, ou da Mostra de Cinema? Há algum apoio?
Nossa últimas edições foram todas com editais, da prefeitura temos apoio para utilizar os espaços. Na décima mostra não conseguimos edital e estamos pensando como vamos fazer, se vamos fazer de forma independente como começamos, hoje temos o básico para realizar as mostras, temos nosso equipamento, temos parcerias incríveis que estão sempre com a gente, e a gente gosta de trabalhar juntas, todas entendem a importância de estarmos juntas. E tem a questão de ter a clipagem, de poder oferecer o projeto em outros lugares.
Produzindo arte na região, o que é ou quais são suas maiores dificuldades, ou do coletivo?
Hoje temos dificuldade de conseguir espaços para ensaiar, estamos produzindo um espetáculo, e tentamos em Caieiras, em Franco da Rocha, e quando precisamos começar os ensaios, quem cedeu lugar pra gente foi a Conpoema. Às vezes há um pouco de desvalorização por parte da Secretaria, de priorizar artistas de fora, artistas famosos, tendo melhores estruturas, e pra nós que somos de casa, precisamos ficar indo atrás, insistindo.
Tem alguém na cidade ou na região que produz arte e que você acha incrível?
Tem muitos coletivos que eu admiro muito, a gente sempre segue, compartilha, estamos sempre acompanhando, mandando mensagens. Tem o coletivo Sete na Linha, que são bem jovens, começaram nas oficinas culturais, fazem teatro e o Sarau Sete na Linha, tem o Encontrão Poético que eu estive presente lá no comecinho quando eles começaram, têm o Coletivo Barroka, daqui de Franco, que trabalha com cinema e a gente tem se aproximado bastante, o Teatro Girandolá, a gente admira e acompanha muito o trabalho deles, tem o Coletivo Granada ai de Caieiras, um coletivo de mulheres incríveis, eu estou fazendo um curso de percussão com elas todo domingo. Eu sempre admirei muito os instrumentos de percussão e me perguntavam: “Será que um dia eu vou conseguir tocar alguma coisa?”, e hoje eu já estou tocando um instrumento de percussão. É um espaço de troca muito enriquecedor.
O que a Luciene ainda gostaria de produzir na cidade? Aquele sonho que vem na sua cabeça às vezes
Atualmente, bem atualmente mesmo, eu ainda nem compartilhei com o coletivo, mas eu gostaria de fazer rodas terapêuticas com nutrição, é um projeto que eu vou desenvolver e mais pra frente vou tirar do papel. Tem um viés social, artístico, nutricional e de saúde mental.
Luciene, a arte é importante pra nós, por quê?
Ela nos tira da zona de conforto, ela nos move, nos dá esperança, faz a gente acreditar no futuro, é um meio de sobrevivência em todos os sentidos, uma ferramenta potente que fortalece. Nos possibilita cuidados, trocas, afetos. Ela muda vidas.
Você pode nos deixar uma recomendação? Uma música, um poema, um vídeo ou recomendar um livro?
São muitas referencias, mas vou deixar um livro que li recentemente, o livro da Conceição Evaristo “Olhos D’água”. São vários contos de histórias de mulheres. Vou puxar sardinha pro meu lado e deixar uma poesia minha também:
“Preta
Preta tu é rainha
Tu és resistência
Da periferia
Nós somos potências
Nossa união e lugar de fala
Não vamos deixar quieto
E nem ficar caladas.”
E tem uma música também que me marcou muito, eu já tinha ouvido fora da faculdade e na faculdade ouvi de novo e fiquei chocada que muita gente não conhecia, que é da Bia Ferreira “Cota Não é Esmola”.










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