Pai contra mãe: quando a história se recusa a passar
- Ronan Arruda

- 10 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 20 de jun.
A adaptação do Coletivo Negro parte do conto de Machado de Assis para escancarar o racismo estrutural no Brasil contemporâneo — com música ao vivo, corpos em estado de denúncia e uma pergunta que reverbera: você tá me ouvindo?
Na montagem de Pai Contra Mãe ou Você está me ouvindo?, o Coletivo Negro parte do conto homônimo de Machado de Assis, mas faz dele um espelho partido — fragmentado, reescrito, atualizado. O que se vê em cena não é apenas uma releitura literária, mas uma denúncia viva da permanência do racismo estrutural no Brasil. Se, na narrativa de Machado, a violência colonial era retratada com ironia sutil, no palco ela pulsa em carne viva, acompanhada de música, suor e palavras cortantes. O espetáculo não nos convida a lembrar o passado — ele nos força a encarar o presente.
Criado em 2008, o Coletivo Negro é um dos grupos mais relevantes da cena teatral contemporânea. Com uma trajetória marcada por investigações sobre estética negra, colonialidade e memória, o grupo constroi um teatro que não apenas denuncia mas propõe outras formas de ver e narrar o mundo.
Com banda ao vivo no palco e um cenário que se movimenta pelas mãos dos próprios atores, a encenação se constroi como um ritual. Cada gesto é político. Cada palavra, uma convocação. A música costura as cenas, carregando tanto o lamento quanto a resistência. O elenco canta, dança e performa como se escrevesse, no corpo, uma outra versão da história — aquela que sempre foi silenciada. A fisicalidade é intensa, mas nunca gratuita: os corpos são o próprio campo de batalha, espaço de criação e denúncia.
A estrutura do conto original permanece, mas é atravessada por uma narrativa atual: a de uma mulher negra acusada de roubo dentro de um supermercado, coagida até perder seu bebê. A analogia com a personagem Arminda, que no conto é capturada e separada do filho, é evidente — mas agora contada do ponto de vista de quem sempre teve a fala negada. A frase que se repete ao longo da peça — “Você tá me ouvindo?” — é mais do que retórica: é um grito.

A crítica não poupa ninguém. Os antigos senhores de engenho são reposicionados como os donos de mercado, os gerentes, os seguranças, os consumidores que viram o rosto. A senzala de ontem reaparece nos porões simbólicos do consumo. “Todo supermercado tem uma senzala”, diz uma das personagens. O corpo preto, que antes era caçado, ainda é perseguido. Ainda é escolhido a dedo. Ainda é julgado e descartado. A perseguição que acontece até hoje tem cor — e a cor é preta.
Frases como “Não sangro mais em praça pública, alguns ainda sim” ou “No Brasil nem todas as pessoas vingam” apontam para a continuidade da violência racial — agora disfarçada de modernidade. Não há chicote, mas há vigilância. Não há tronco, mas há câmeras. O que se perpetua é a lógica. “Quem manda no mundo não muda”, diz uma voz. E outra, no fim, ousa desejar: “Que a gente possa mudar” — fala de Jé de Oliveira, diretor e dramaturgo da peça.
Ao evocar o corpo negro como centro da narrativa, a peça se aproxima do pensamento de intelectuais como Sueli Carneiro, que denuncia a lógica do epistemicídio e do silenciamento histórico. Aqui, o palco não é espaço de representação, mas de reexistência: um quilombo simbólico onde a memória é arma e abrigo.
Naquela noite, o silêncio do público era denso. A tensão pairava como uma respiração coletiva suspensa. Não havia como sair ileso. A peça não termina com um aplauso, mas com uma pergunta em suspensão. Se a história insiste em se repetir, talvez o que precise mudar não seja o tempo, mas quem tem o direito de contá-la.
Crítica por Ronan Arruda, ator e jornalista, formado pelo SENAC e pela UNINOVE. Pesquisa corpos em cena, dramaturgia negra e modos de narrar resistências no teatro brasileiro. É também um espectador apaixonado pelas artes e pela potência dos palcos.









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