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Kiwi, uma bomba de sensibilidade nos palcos

  • Foto do escritor: Sidney Santiago Kuanza
    Sidney Santiago Kuanza
  • 20 de jun.
  • 4 min de leitura

O enegrecimento de um clássico infantojuvenil pelas mãos de Luh Mazza


Créditos: Luciana Zacarias
Créditos: Luciana Zacarias

Do contexto


Celebrando 20 anos de carreira, a diretora e dramaturga Luh Mazza revisita “Kiwi”, do canadense Daniel Danis, que aborda a gentrificação e as superlotações em prisões infantis.


A peça fez temporada em março e abril, no Sesc 24 de Maio, na cidade de São Paulo, com tradução e encenação de Luh Mazza, que, com grande destreza, se firma como uma das maiores encenadoras da atualidade. Escrita em 2007 e inspirada em notícias reais de superlotação de prisões do leste europeu e do processo de especulação imobiliária nas cidades que passaram a figurar em calendários de grandes eventos, a peça se tornou um sucesso e foi encenada em diversos países, como Alemanha, França, Hungria, México e Brasil.


Em 2016, ocorreu a primeira montagem brasileira, também dirigida por Luh Mazza. O contexto eram os Jogos Olímpicos disputados na cidade do Rio de Janeiro. Como panorama social do estado do Rio de Janeiro, havia a superlotação em penitenciárias e o escândalo das chacinas com envolvimento de policiais, que na ocasião, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, vitimaram 141 pessoas na capital carioca. Já em âmbito nacional, havia uma instabilidade política que ocasionou o afastamento, o golpe e impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. 


“Quando estreamos no final de 2016 aquele a quem considero o golpista já estava na presidência. Vivíamos uma revolta e incerteza. Acho que isso contribuiu também para que as pessoas sensíveis aos temas sociais de Kiwi, entre tantos outros, acabassem se conectando ainda mais intensamente com a obra. E lembro que eu pensava com certa ironia numa das falas da personagem: 'Um presidente de qualquer coisa', que talvez ali, naquele contexto, 'qualquer coisa' poderíamos ser nós, o país." LM

Kiwi é a alcunha de umas das personagens, uma menina órfã de 12 anos que sobrevive sob os cuidados de seus tios às margens de uma grande metrópole. Com a chegada dos Jogos Olímpicos, o governo realiza uma limpeza social para a construção de estádios e outros edifícios para o evento. Moradias são destruídas, moradores são expulsos e miseráveis, exterminados.  A trama ainda ganha contornos mais dramáticos quando a menina é abandonada em uma praça por seus parentes e é levada pela polícia. No abrigo-prisão, ela conhece uma jovem que a convida para fugir com ela e seus amigos, um grupo de crianças e adolescentes em situação de rua que vivem juntos e se ajudam, aos moldes de uma pequena sociedade secreta. Todos carregam como apelidos nomes de fruta.


Em 2025, a remontagem aconteceu, pela primeira vez, com um elenco formado por intérpretes negros. A negrura dada pelos atores a essas personagens trazem camadas ainda mais profundas e densas porque, no Brasil, são as crianças negras e mestiças as que menos têm acessos a direitos básicos. Historicamente lhes é retirado, inclusive, o direito de usufruir da própria infância.


Outro ponto a ser mencionado é que, coincidentemente, a montagem teve sua estreia no mesmo período de lançamento da aclamada série Adolescência, da Netflix, projeto que provocou um debate global sobre a importância dos cuidados de crianças e adolescentes no contexto digital.


Embora o Brasil tenha sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 13 de junho de 1990 – há 35 anos, portanto –, o país ainda tem um enorme desafio em relação aos direitos humanos, especialmente os das crianças e adolescentes. Entre 2015 e 2016, o país caiu 64 posições e passou a ocupar o 107º lugar no ranking de direitos das crianças (The KidsRights Index). Quase vinte anos depois, em 2024, o Brasil pouco avançou nisso e ainda ocupava a 102ª posição nessa classificação.


A situação é agravada pela revolução tecnológica pela qual estamos passando, pois outras problemáticas se apresentam, como a violência destinada a crianças e jovens no ambiente virtual. Os crimes cibernéticos seguem evoluindo e, na ausência de legislação e regulamentação específicas, eles acabam dificultando ainda mais o árduo trabalho a ser feito por educadores, pais e autoridades – proteger e assegurar os direitos de crianças e adolescentes.



Da cena


A encenação é um experimento sofisticado, tanto na forma como no conteúdo da adaptação textual, que privilegia a essencialidade e a intimidade.


É em um espaço muitíssimo restrito e delimitado por luzes de led que toda a ação de Kiwi acontece. Em uma sensível navegação, os atores criaram suas personagens como se deslizassem em um tabuleiro de xadrez. Gestos calculados, medidos e milimetricamente bem desenhados dão o tom de uma coreografia contínua. Em um constante fluxo entre corpo e fala, Sol Menezzes e Victor Liam, executam de forma primorosa e madura os desenhos da cena e os conflitos das personagens.


A iluminação, um dos elementos mais bem-sucedidos na montagem de Luh Mazza, confere ao enredo tensão constante e suspense. A luz fria capta a atmosfera e expande os limites do cenário, convidando o expectador/espectador a uma segunda entrada no drama.


O público é capturado pelo magnetismo do conjunto. Trilha, luz, direção, direção de movimento, figurino, direção de arte e atores estão em profunda comunhão. É desse cenário que emana a potência criativa e que se materializa o corpo-tela cunhado e defendido por Leda Maria Martins.


A passagem ao drama, a denúncia, mas, sobretudo, a esperança, ganham plataforma na inscrição cênica de uma diretora profundamente conectada ao seu tempo, ao seu país e à sua técnica. Sua capacidade de gestão inaugura um frescor e propõe novos desafios estéticos ao Teatro Negro Paulistano.


A montagem se torna universal por apostar na delicadeza com guesto, propondo um final impactante que une o teatro ao documento histórico, trazendo recortes de infâncias mutiladas e fazendo, assim, uma denúncia pública.


O Teatro na sua melhor forma fazendo o trabalho de enfrentar a truculência do tempo presente.




Por Sidney Santiago Kuanza, ator e diretor formado pela EAD/ECA/USP. É membro fundador da Cia Os Crespos, coletivo com 20 anos de atuação ininterrupta na cidade de São Paulo. Ainda no Teatro é fundador do Coletivo Selo Homens de Cor, plataforma que discute masculinidades negras. Atua em Teatro, Cinema e Televisão. No cinema foi protagonista de oito longas metragens entre eles: O Novelo, direção de Claudia Pinheiro, Lima Barreto ao Terceiro dia, direção de Luiz Pilar, Sequestro Relâmpago de Tata Amaral, Mundo Deserto de Almas Negras de Ruy Veridiano, Os 12 Trabalhos de Ricardo Elias, entre outros. Atualmente circula o país com a montagem " A Solidão do Feio" mergulho na vida, obra e intimidade do escritor Lima Barreto, projeto que lhe rendeu uma indicação ao 35º Prêmio Shell de Teatro.

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